Buscando respostas para a síndrome do intestino irritável, entrevistei o médico psiquiatra Eduardo Humes, Chefe da Seção Técnica de Psiquiatria do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo. Ele explicou a ligação entre a SII e o cérebro, o porquê de o tratamento do problema englobar outras áreas da saúde para ter sucesso e deu dicas de como lidar com o estigma de uma patologia ainda pouco conhecida. Confira:
Pergunta: Explique a ligação da SII com o cérebro.
Resposta: Os mecanismos envolvidos nos sintomas da SII não são claros. Ela é uma síndrome funcional, o que significa dizer que o problema não é uma questão de uma alteração que podemos ver como uma úlcera ou um tumor, por exemplo, mas uma mudança do funcionamento normal de um sistema. O sistema nervoso central modula o funcionamento geral do organismo, fazendo com que, no caso do intestino, ele possa funcionar de maneira mais rápida (maior quantidade de movimentos peristálticos) ou mais lento (menor quantidade).
No alerta de maneira crônica, o intestino deve receber informações do cérebro de maneira que possamos nos liberar de maior peso, por meio de um aumento dos movimentos peristálticos. Quando estamos no pico, a sinalização é para reduzir esses movimentos. Já na ausência do estímulo, funcionaria normalmente. Uma das teorias, talvez a principal, para explicar a oscilação do funcionamento intestinal na SII é que esta se daria por uma exacerbação da resposta a esses mecanismos. E o cérebro teria um papel essencial nesta modulação.

P – As pessoas costumam ligar o problema à alimentação. Como convencê-las do contrário?
R – As síndromes funcionais são como grandes elefantes, se você estiver muito perto você só vai conseguir ver um pedaço. Alguns alimentos podem, sim, causar gatilhos mais exacerbados, o que facilita às pessoas a realizarem essas associações. Mas nem todos têm as mesmas reações aos alimentos. O convencimento, que é a parte mais “difícil”, passa por uma única estratégia, que é a educação. Por isso a necessidade de se ocupar as mídias com essa agenda.
P – Claro que há dias em que passamos por situações estressantes, mas como explicar que o problema surja mesmo naqueles dias considerados “normais”?
R – Esta questão tem que ser vista caso a caso, mas uma explicação frequente é que pessoas com síndromes funcionais podem ter o que chamamos de alexitimia, que é um termo para falar da dificuldade em entrar em contato ou descrever emoções, sentimentos e sensações corporais. Assim, muitas vezes a pessoa pode estar passando por uma situação mais “estressante”, por exemplo, e não se percebe assim.

P– Há muita resistência das pessoas em aceitar o diagnóstico?
R – As pessoas, de maneira geral, apresentam um grande estigma com diagnósticos de saúde mental, seja de síndromes psiquiátricas ou de sintomas psíquicos em geral. Quando falamos que um sintoma físico pode estar relacionado a um funcionamento psíquico, muitas pessoas interpretam como fraqueza ou falha de caráter, por exemplo, e não aceitam o diagnóstico. Mas, em geral, quando procuram um profissional de saúde mental, a parte mais difícil do convencimento já foi feita por outra pessoa, profissional ou familiar.
P – O tratamento psicológico tem de correr em paralelo ao feito com gastroenterologistas e nutricionistas. Só assim se consegue melhora?
R – Gosto de fazer uma comparação com meus pacientes, pergunto se eles tivessem uma fratura na perna eles só iriam ser operados e tomar remédios ou se fariam fisioterapia também. A ideia de não fazer fisioterapia é muito similar à de não fazer psicoterapia para SII. Você pode melhorar, sim, mas talvez parte do potencial seja perdido.

P – Como evitar estresse e ansiedade nos dias de hoje? Cidades grandes pioram o quadro, mas isso de se estar sempre conectado na internet e redes sociais também amplia o problema?
R – Esta é uma importante pergunta, talvez a pergunta do Prêmio Nobel… Mesmo a afirmação de que as grandes cidades pioram o quadro é controversa, elas com certeza aglutinam pessoas que são mais ansiosas, mas será que as pessoas mais ansiosas não buscam também por esses ambientes? Um problema que vemos frequentemente é que as pessoas estão cada vez mais inseridas em realidades virtuais em detrimento do contato humano.
Contato humano, um abraço de fato (não aqueles que nos acostumamos e duram menos de dois segundos), olhar nos olhos das pessoas, apresenta, sim, um efeito importante na maneira que nos sentimos. Já as redes sociais, que são excelentes em muitos aspectos, como dar voz a muitas pessoas que não conseguiriam se comunicar efetivamente, ao mesmo tempo criam situações nas quais a agressividade das pessoas sai por não terem o filtro do olho no olho.
P – A maioria das pessoas com este problema tem de tomar antidepressivos, por exemplo?
R – A decisão deve ser feita caso a caso, muitas vezes para aquele momento. Uma parcela importante poderá, sim, se beneficiar do uso de medicações, mas não a maioria e nem todos os que tiverem indicação usarão em longo prazo (mais que dois anos).

P – Terapias complementares ajudam? Quais?
R – Sim, em especial meditação, atividade física e também acupuntura mostram efeitos importantes.
P – Pode citar algum caso em que o paciente teve uma melhor significativa?
R – Não, pela ética médica não posso citar um caso, mas, sim, muitos pacientes se beneficiam, em especial do seguimento psicoterápico, que pode ser feito por psicólogos ou psiquiatras.
P – Como agir no emprego? Falar abertamente com os superiores? Li depoimentos de pessoas que pararam de trabalhar, especialmente as que têm SII-D, porque passaram por experiências constrangedoras, até no caminho ao trabalho, no transporte público etc.
R – Os constrangimentos podem ocorrer em especial nas formas que apresentam quadros diarreicos (SII-D e SII-M). A maneira que cada um vai lidar com o impacto da SII depende inicialmente de como a própria pessoa lida com os sintomas. Se não conversamos abertamente, não haverá a redução do estigma. Antigamente, a epilepsia (e as convulsões) era associada a importante estigma, com a abertura no diálogo, hoje é tratada de maneira mais natural. O estigma é real, mas deve ser combatido dentro das possibilidades de cada um.
P – Como agir com a família, já que sempre haverá alguém achando que o problema é “frescura”, “nada sério”, “pode comer isso que não te fará mal…” etc.
R – O estigma é resultado do desconhecimento. Ajudar as pessoas a melhorar sua capacidade de compreender os fenômenos é a melhor forma de ajudá-las a sair do ciclo de preconceito.

P – SII não tem cura, então, conselhos para se viver com ela, mas sem muitas manifestações. Ou isso é impossível.
R – Como todas as síndromes funcionais é essencial para o melhor controle o manejo do quadro, isso envolve o cuidado multiprofissional em diversas frentes, incluindo: gastroenterologia, nutricional, saúde mental, atividade física, meditação (como mindfulness), com adesão aos cuidados propostos.
Fonte: Eduardo de Castro Humes é médico psiquiatra, formado e residência pela Faculdade de Medicina da USP. Chefe da Seção Técnica de Psiquiatria do HU/USP, Coordenador Médico do Grapal/FMUSP, Colaborador do Escritório de Saúde Mental da USP, Diretoria Executiva do Forsa-Abem, Representante Internacional da Association for Colege Psychiatry, Doutorando do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Autor de artigos científicos e capítulos de livros, além de organizador de livros científicos em psiquiatria